quinta-feira, 4 de junho de 2009

MAIS RUBI... Um Encontro... Queres um Martini?



(...)
- parece que agora temo-nos visto muito… – ele disse entregando-lhe um Martini.
Rubi sorriu com frialdade.
- parece, não é?
havia um espelho naquele lado que dava a ilusão de que se podia ir mais além, que a biblioteca era ainda maior. ao fundo dava uma sensação de infinito. era fantástico e ao mesmo tempo angustiante. hipnotizante. dava medo…
- vejo que nunca perdes o toque de mestre. – Rubi, com fingida indiferença, folhou um livro sobre uma mesa alta, de forma quadrada. – sempre te deste bem a criar ilusões.
ele fez um sorriso cínico com prazer.
- faço o que posso.
- eu sei. – fitaram-se trocando significados e depois, Rubi sorriu com desprezo. – não sei porque é que te incomodas tanto, António. tu, sozinho, já és suficientemente ilusório. – olhava-o directamente para os olhos. – bastante, até dizer chega, na verdade...
- isso é um elogio?
- é um facto. – respondeu categórica.
- nunca me esquecerei do quanto a tua espada é letal... mas lembro-me também de que tinhas um lado sensível.
- ainda sou assim. – Rubi sorriu. – acredito que devo tentar pensar que as pessoas são basicamente decentes.
- sim? – ele riu-se em tom de deboche. – e como é que suportas a desilusão?
um autêntico hipócrita. Rubi teve ímpetos de desatar a chorar. apertou o livro e manteve o prumo, reprimindo a estranha onda de amargura. António era um ser humano. deveria saber que certas feridas não se curam totalmente. uma dor profunda não diminui e a pena permanece enterrada num lugar onde não pode ser alcançada nem por palavras nem por actos. quase inofensiva, corroendo minúsculos pedaços, simplesmente permanece.
- bem. pratiquei bastante. – respondeu enfadada.
recordou uma vez, entre uma conversa e outra, ele lhe ter dito que, quando perdemos o pé, quando já nada nos faz sentido, quando a nossa volta tudo se desfaz, temos que traçar um objectivo. um, daqueles quase impossíveis para nos preencher a mente e não pensarmos em coisas que nunca nos levam a lugar algum. com o tempo Rubi aprendeu que o mundo tem outros sentidos, que a vida quer dizer coisas que, num momento presente não sabemos. com o tempo aprendeu isso. e compreendia tudo isso. tinha ficado, no entanto, aquele susto que a corroía, a desnorteava e confundia. tinha sido um cume. curto. pontiagudo. breve.
naquele momento, ali, naquela biblioteca, parecia uma outra vida. onde tinha ido parar tudo? aquele sentimento quase insano? quase? tinham atingido a raia de tudo e, ébrios, descambaram para um precipício egoisticamente.
sorriu para despistar o olhar perscrutador.
- não sabia que gostavas de Paulo Coelho. – disse com uma férrea determinação em não se deixar abater.
- não sabes muita coisa.
- é um escritor alquimista e tu não és dado a fantasias...
- gosto de ter ainda algumas... a minha maneira – ele disse sem expressão.
Rubi olhou-o nos olhos. pareceu-lhe vê-lo sorrir.
- sim? e como suportas a desilusão? – inquiriu cinicamente, imitando-o.
- bastante bem. como tu própria disseste, sempre me dei bem em iludir as pessoas. quem sabe, não é?
ele tinha-se tornado num homem cruel. dadas as circunstâncias, era normal ter-se dado aquela transformação nele. por um bom tempo ela também tinha sido cruel. tinha desistido depois. muito depois. tinha que sobreviver. no entanto, agora, aquela resposta magoara-a e a sua boca curvou-se num sorriso de troça. era uma reacção estúpida, talvez uma compensação, uma forma de tentar equilibrar a tristeza. não encontrou palavras para rebater e apenas dedicou-lhe um rápido olhar.
- penso que o mais sensato é iludirmo-nos com aquilo que podemos. os sonhos não têm consistência, Rubi, sempre te disse isso.
- sim. – levantou os olhos para ele, sustentando um doloroso sorriso. – já me tinha apercebido disso. pena que não te dei ouvidos como devia… – interrompeu-se.
- ainda te magoa? – ele perguntou depois de um silêncio reverenciador.
Rubi soltou uma curta gargalhada.
- imagina. durante o período que estivemos juntos, tive tempo suficiente para me adaptar.
- ainda te magoa. – ele afirmou
- pensei fazer-te a mesma pergunta.
- não é uma pergunta.
Rubi achava dispensável digladiarem-se daquela maneira. tinham havido feridas demasiadas. bastavam. sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos. não havia necessidade de serem tão cinicamente rudes. abaixou os olhos e deu-lhe as costas, com o pretexto de colocar o livro no lugar e, sob a desculpa de se ter interessado por mais alguns, deixou-se ficar um pouco. sentiu quando ele se afastou.
- queres outro Martini?
- não, obrigada. – virou-se e apanhou as chaves do carro que tinha deixado sobre a mesa. – tenho que ir embora. – disse. – o meu marido espera-me.
e saiu. quase a correr.
(...)


Fonte Fotografia: gettyimages.com